A idéia da globalização da economia e da cultura, que hoje se apresenta
moderna, é mais velha que a Sé de Braga. Modernos são os computadores, a
velocidade da Bolsa e o vertiginoso trânsito das capitais. Todos os
dias as bolsas movimentam um trilhão e meio de dólares em escala
mundial, e apenas um por cento deste dinheiro serve à criação de
riquezas; 99% são transações especulativas que buscam o lucro, como
informa “Le monde diplomatique”. Essa astronômica quantia é tão moderna
como o pagamento dos juros da dívida externa...sem auditoria. A
crueldade do poder imperial, ao contrário, tem longas barbas brancas.
As relações econômicas internacionais, fantasiadas com a discreta elegância da diplomacia, sempre foram de natureza predatória, obra que são do ser humano. Toda vez que uma nação, tribo ou império alcançou sobre seus vizinhos poder hegemônico, sempre procurou destruí-los. Jamais o forte estendeu ao fraco a mão amiga. O Império dos mil anos não hesitava em aplicar soluções finais aos diferentes - matava. A Pax Romana outra coisa não foi senão a globalização do poder de César. Átila, o Flagelo de Deus, invadia terras e, por onde passava seu cavalo, a erva jamais cresceria. Não se diga, pois, que globalizar é moderno: a voracidade humana sempre existiu, e hoje, campeia.
Hipocrisia A hipocrisia é o manto diáfano que esconde a nudez canibalesca da globalização. Quando se invadiu o Iraque por ter ocupado poços de petróleo do Kuwait - o que fez dobrar o preço do barril! - invocou-se o sagrado dever de Ingerência Humanitária: bombardeou-se Saddam...e o barril baixou de preço. Este mesmo humanitário dever de ingerência é esquecido em Sierra Leona, onde cortar braços e pernas de prisioneiros políticos, mesmo crianças, é rotina; e também em Ruanda e na Eritréia, onde tratores empurram para a cova rasa cadáveres putrefatos, amontoados.
Clinton tem um sorriso sedutor. Visitando o Vietnã, exortou os dirigentes vietnamitas a prestarem mais atenção aos direitos humanos: quem não concordaria? Detalhe: Clinton foi presidente da nação que, há 25 anos, lançou toneladas de napalm sobre o Vietnã e matou dois milhões de vietnamitas - onde estava o respeito aos direitos humanos? Dois milhões de hipocrisias...
Lucro Eu seria globalmente a favor da globalização se o seu objetivo fosse a saúde, a educação e a ciência. Mas o que se globaliza é a busca do lucro, é a Bolsa. Quando o Banco Santander comprou o Banco do Estado de São Paulo, em tumultuado e nebuloso leilão, em novembro de 2002, não teve o menor escrúpulo em despedir centenas de empregados para modernizá-lo: o Banespa passou a dar maiores lucros, criando mais pobreza.
Ainda assim, as ações do banco espanhol baixaram de preço, porque os acionistas pensavam ser loucura investir no Brasil, país não confiável, naquela época, dirigido por um governo desacreditado; mas logo voltaram a subir quando se soube que os sete bilhões de reais pagos pelo Santander seriam recuperados em dois anos, por meio de artifícios tributários, como explicou o DIEESE.
Disse o rei Afonso VI da Espanha: “Se, antes de criar o mundo, Deus tivesse perguntado a minha opinião, eu teria aconselhado alguma coisa mais simples, um ser humano menos complicado, sem tanta arrogância e cupidez”.
Enfim...o mundo é o que é. Não somos culpados pelo que é ou pelo que tem sido, mas teremos responsabilidade pelo que vier a ser.
Revelação Quero fazer uma revelação estarrecedora: a Vida se alimenta da Morte. A Natureza é impiedosa, cruel, amoral - ela nos dá o mau exemplo. Nela, o gordo come o magro, o forte engole o fraco. Para que estejamos vivos, temos que matar, seja um suave pé de alface ou uma porca de 300 quilos: esta é a nossa natureza animal, que transportamos para as relações humanas.
O ser humano ainda não se humanizou e vive pendurado pelo rabo, saltando de galho em galho; ainda não se rege pela Moral. Vivemos épocas neandertalianas e, só porque aprendemos a dar nó em gravata, pensamos que já somos Homo Sapiens e, pior - que pretensão! - Sapiens Sapiens! Temos que ver de frente a verdade: somos bichos! - ponham isto na cabeça! O homem é o lobo do homem - dizia o poeta. Eu acrescento, prosaico: o homem come...e é comestível!
Invenção Nesse mundo de rancor e ódio, trancos e barrancos, a Bondade é uma invenção humana - não nasce espontânea como flor silvestre. Tem que ser ensinada e aprendida...mas o ser humano é mau professor e pior aluno. Esta é a nossa vasta, imensa tarefa: temos que nos afastar da nossa natureza selvagem e criar uma cultura em que a bondade seja possível e a solidariedade gozosa. Esta é uma tarefa cultural! A Cultura, porém, não se limita às obras expostas em museus ou aos espetáculos com entrada paga: cultura é o como fazer, para quê e para quem. Temos que assumir a nossa condição humana, criadora. Não somos castores que constroem diques geneticamente programados, sem saber o que fazem, ou pássaros que fabricam sempre o mesmo ninho, cantando a mesma canção, sem escolher a partitura. Não somos uirapurus, que congelam a floresta com a beleza do seu canto, quando abrem o bico. Somos capazes de cantar e construir, mas somos mais, muito mais, capazes de inventar canções e arquiteturas! O uirapuru sabe cantar, mas não sabe que está cantando - nós, mesmo cantando desafinados, sabemos desafinar.
Liberdade A Arte faz parte da Cultura, porque a cultura é o ser humano, é o que há de humano no ser: é o que nos distingue de quem é bicho. Para fazer cultura, para inventar, o artista tem que ser livre e fazer o que quiser. Se ele se submete ao mercado, se aceita suas leis e deixa de ser criador, deixa de ser artista. Eu admiro os comerciantes que fazem do seu comércio uma arte, e tenho piedade dos artistas que fazem de sua arte um comércio.
No mundo globalizado, a cultura e a arte, por serem tão poderosas, nos são roubadas e passam a servir ao mesmo propósito do comércio: o lucro. Quando assistimos a um filme de Hollywood, não é apenas o enredo que temos que engolir goela abaixo: são os modelos de brim, os chapéus texanos, o uísque mal-acabado, a música, os Hello, Joe! Go to hell, Jack! São os carros que explodem em modernas pontes de aço, e que são jogados ao mar, sulcado de jet-skis. São as sirenes policiais, as violências, os últimos modelos de metralhadoras que serão usadas pelos nossos traficantes, sempre up-to-date com as inovações bélicas.
Um filme vende mais mercadorias do que os anúncios comerciais explícitos. O mero fato de que a maioria dos filmes de TV a cabo seja falada em inglês já nos faz pensar em inglês, mesmo aqueles que não conhecem o significado das palavras. Não é por outra razão que, nas favelas cariocas, podem-se encontrar pessoas que atendem pelos nomes de Shierley Temple de Oliveira, Clark Gable da Silva, John Wayne dos Santos - graças a Deus, ainda não topamos com nenhum Sylvester Stallone de Deus, Michael Jackson da Encarnação ou Madonna Mia do Encantado.
Crime O fato de assistirmos na telinha a situações assim chamadas cômicas, mesmo que não tenham a menor graça, ou românticas, mesmo sem amor, já nos faz assimilar os sentimentos e os comportamentos dos personagens, mesmo que os saibamos imbecis e insossos. Ficamos sem sal e bobos. Tv tem sido uma forma criminosa de hipnotismo. A globalização do lucro impõe a uniformização dos seres humanos: todos devem ser iguais e consumir igual, vestir igual e comer o mesmo hambúrguer de vaca louca! A globalização impõe normas de comportamento, valores, ideologias e gosto estético.
Quando se diz que os últimos governos brasileiros nunca deram a importância devida à Cultura, eu penso diferente: sempre deram enorme importância à cultura estrangeira e aceitaram passivamente que ela invadisse nossas telas, telinhas e telões. Servilismo infantil, complexo de inferioridade.
Perigo Quando a França exigiu a exceção cultural - isto é, exigiu que o cinema e outras artes ficassem de fora da liberdade de invasão de uma potência por outra, num grande acordo comercial - não era o valor intrínseco das suas obras de arte que estava protegendo: pensava no perigo que a arte norte-americana traria no seu bojo, a propaganda do seu país e seus costumes, e também o vestuário, a indústria automobilística, os eletrodomésticos etc. As telas de cinema são vitrines de Mercadorias e de Moral - as mercadorias se vendem e a Moral se impõe.
É importante para os globalizantes destruir as culturas nacionais, locais, onde pretendem impor o seu comércio; é importante dizimá-las, pois a cultura é identidade, e os globalizantes precisam destruir identidades para melhor venderem seus produtos.
Quando ouvimos música brasileira, bossa nova ou tradicional, chorinho ou samba de carnaval, vemos a nossa cara, mesmo se feia; vendo um filme, mesmo da Atlântida, dizemos: “Somos nós!” - mesmo com pena. Hoje, é proibido ver-nos em nossa arte. Temos que ouvir rock e heavy metal, ver Godzillas e Homens Aranha! A globalização impõe a todos a mesma língua, na qual devemos dizer: yes, sir, why not?
Paradoxo Este é o curioso paradoxo da globalização: para globalizar é necessário abolir o diálogo, isolar o indivíduo - não para que fortaleça sua individualidade, mas para que desapareçam suas diferenças, que lhes dão unicidade. Instala-se o indivíduo diante da TV - TV como símbolo de intransitividade, não como eletrodoméstico - para que, dele, anestesiado, extraia-se a sua individualidade.
Seqüestra-se a individualidade do indivíduo, transformado em coisa. Isola-se o indivíduo para que perca sua individualidade, ao perder o diálogo, ao perder suas alteridades. Indivíduo sem identidade, sem nome: apenas um número! Elimina-se a descontinuidade entre um indivíduo e outro: o monólogo da globalização promove a clonagem do ser humano! Em arte, elimina-se o artista - aquele que cria o novo - e entra em cena o técnico artesão - aquele que reproduz, ad infinitum, o mesmo modelo.
A globalização é a morte do artista!
Impossibilidade Hoje, é quase impossível ser artista e permanecer no mercado cultural - poucos conseguem. Se quisermos, com nossa arte, ajudar a mudar o mundo - nosso país, nosso estado, nossa rua! - é imperativo trabalhar onde a arte não se compra nem se vende, onde a arte se vive. Onde somos todos artistas - lá, onde vive o povo: nas ruas, favelas, nos acampamentos do MST, nos sindicatos, igrejas. Lá estão aqueles que necessitam de sua própria identidade para se libertarem da opressão, mesmo quando dominados pelas idéias dominantes, mesmo quando alienados: devemos ter esperanças, mas não ilusões.
Existem hoje duas ideologias fundamentais neste mundo terminal: uma que diz que a Humanidade é uma só, que somos irmãos, e o Estado deve oferecer oportunidades iguais a todos, sem levar em conta o berço, a conta bancária e o cheque especial. A outra humanidade pode ser explicada por uma fábula antiga, a Jangada da Medusa.
Náufragos Ela nos conta a história de náufragos à deriva: sem comida, decidiram trucidar e comer os moribundos. Primeiro, os aleijados; logo depois, criancinhas indefesas, mais tarde...Queriam se salvar e foram-se comendo uns aos outros até que, na jangada, sobrou um único sobrevivente.
Morto de fome, o único náufrago pôs-se a comer a si mesmo, começando pelas partes mais dispensáveis do seu corpo: os dedos e o braço esquerdos, e também a perna do mesmo lado. Foi comendo o seu corpo e acabou por comer os intestinos, já que não tinha encontrado nada de mais nutritivo, nem na cabeça nem no coração: órgãos inúteis! A última coisa que o náufrago comeu foi a própria língua e a boca! Depois não comeu mais nada...cuspiu um dente!
Canibal As classes ricas, no Brasil, ainda estão comendo apenas crianças de rua, trabalhadores sem-terra, negros e desempregados. Mas virá o dia em que se comerá a si mesma! Essa ideologia canibal também se chama Modernidade. Canibalismo é moderno! Dizem que esquerda e direita já não existem, são coisas da Revolução Francesa. Não falarei de esquerda e de direita, palavras fora de moda. Falo de Humanismo e Canibalismo - basta de hipocrisias!
Neste confronto, Humanismo versus Canibalismo - Tiradentes versus Joaquim Silvério - no Brasil ainda estão vencendo os canibais! No mundo que se pretende robotizar, a obra de arte perde sua razão de ser e dá lugar ao produto único. O Mercado opera em nós a Prótese do Desejo, extirpa nosso desejo e nos implanta o desejo do Mercado. Para que se compre e venda mais, tenho que cantar com a garganta do cantor de sucesso; bailar com as pernas de outro bailarino, não com as que tenho; ver o mundo com olhos alheios, não com os meus. Chorar a lágrima que não é minha, sorrir o sorriso que esculpiram no meu rosto, como pedra.
Apelo Eu peço: cantemos com a nossa voz, mesmo rouca; bailemos com o nosso corpo, mesmo trôpego; digamos a nossa palavra, mesmo insegura. Essa deve ser a arte dos Humanistas, daqueles que negam a robotização, afirmam as diferenças e, delas, a unidade: somos homens e mulheres, temos a pele negra e a pele branca, são nossos olhos azuis e castanhos, e a nossa esperança é verde! Somos diferentes: pelas culturas em que crescemos, países em que vivemos; somos iguais pela determinação em sermos nós mesmos, em nos recusarmos a ser extensões do Mercado-Rei, macacos de auditório!
A globalização deseja o monólogo: para combatê-la, o diálogo é necessário, nos sindicatos e nas igrejas, nas escolas e nos partidos, nas ciências e nas artes, na solidão do divã do psicanalista e nas reuniões do teatro na praça.
Privilégio O teatro é um meio privilegiado para descobrirmos quem somos, ao criarmos imagens do nosso desejo: somos o nosso desejo, ou nada somos. Por que o teatro? Porque existem artes, como a música, que organizam o som e o silêncio, no tempo; como a pintura, que organiza a forma e cor, no espaço; e existem artes como o teatro, que organizam ações humanas no espaço e no tempo. Ao organizarem ações humanas, o teatro mostra onde se esteve, onde se está e para onde se vai: quem somos, o que sentimos e desejamos. Por isso, devemos fazer teatro, todos nós: para saber quem somos e descobrir quem podemos vir a ser.
No Teatro do Oprimido, aquele que entra em cena para contar um episódio de sua vida é, ao mesmo tempo, o narrado e o narrador - pode, por isso, imaginar-se no futuro. Entra em cena para fazer teatro, porque teatro não se faz sozinho, e para que possamos todos dizer eu, antes de nos juntarmos numa palavra mais bela: nós!
Espelho “O teatro é um espelho onde podemos ver nossos vícios, nossas virtudes” - disse Shakespeare. Pode-se também transformar em espelho mágico, como no Teatro do Oprimido, espelho que podemos invadir se não gostarmos da imagem que nos mostra e, ao penetrá-lo, ensaiar modificações desta imagem, fazê-la mais ao nosso gosto. Neste espelho, vemos o presente, mas podemos inventar o futuro dos nossos sonhos: o ato de transformar é transformador - ao mudar nossa imagem, estaremos mudando a nós mesmos, para mudarmos, depois, o mundo.
Teatro é arte e sempre foi arma. Hoje, mais do que nunca, lutando pela nossa sobrevivência cultural, o teatro é arte que revela nossa identidade e arma que a preserva. Para resistir, não basta dizer não: desejar é preciso! É preciso sonhar. Não o sonho colorido da televisão que substitui a dura realidade em preto e branco, mas o sonho que prepara uma nova realidade. Uma nova realidade em que se busque unificar a Humanidade, mas não uniformizar os seres humanos.
Hoje, o teatro é uma arte marcial!
As relações econômicas internacionais, fantasiadas com a discreta elegância da diplomacia, sempre foram de natureza predatória, obra que são do ser humano. Toda vez que uma nação, tribo ou império alcançou sobre seus vizinhos poder hegemônico, sempre procurou destruí-los. Jamais o forte estendeu ao fraco a mão amiga. O Império dos mil anos não hesitava em aplicar soluções finais aos diferentes - matava. A Pax Romana outra coisa não foi senão a globalização do poder de César. Átila, o Flagelo de Deus, invadia terras e, por onde passava seu cavalo, a erva jamais cresceria. Não se diga, pois, que globalizar é moderno: a voracidade humana sempre existiu, e hoje, campeia.
Hipocrisia A hipocrisia é o manto diáfano que esconde a nudez canibalesca da globalização. Quando se invadiu o Iraque por ter ocupado poços de petróleo do Kuwait - o que fez dobrar o preço do barril! - invocou-se o sagrado dever de Ingerência Humanitária: bombardeou-se Saddam...e o barril baixou de preço. Este mesmo humanitário dever de ingerência é esquecido em Sierra Leona, onde cortar braços e pernas de prisioneiros políticos, mesmo crianças, é rotina; e também em Ruanda e na Eritréia, onde tratores empurram para a cova rasa cadáveres putrefatos, amontoados.
Clinton tem um sorriso sedutor. Visitando o Vietnã, exortou os dirigentes vietnamitas a prestarem mais atenção aos direitos humanos: quem não concordaria? Detalhe: Clinton foi presidente da nação que, há 25 anos, lançou toneladas de napalm sobre o Vietnã e matou dois milhões de vietnamitas - onde estava o respeito aos direitos humanos? Dois milhões de hipocrisias...
Lucro Eu seria globalmente a favor da globalização se o seu objetivo fosse a saúde, a educação e a ciência. Mas o que se globaliza é a busca do lucro, é a Bolsa. Quando o Banco Santander comprou o Banco do Estado de São Paulo, em tumultuado e nebuloso leilão, em novembro de 2002, não teve o menor escrúpulo em despedir centenas de empregados para modernizá-lo: o Banespa passou a dar maiores lucros, criando mais pobreza.
Ainda assim, as ações do banco espanhol baixaram de preço, porque os acionistas pensavam ser loucura investir no Brasil, país não confiável, naquela época, dirigido por um governo desacreditado; mas logo voltaram a subir quando se soube que os sete bilhões de reais pagos pelo Santander seriam recuperados em dois anos, por meio de artifícios tributários, como explicou o DIEESE.
Disse o rei Afonso VI da Espanha: “Se, antes de criar o mundo, Deus tivesse perguntado a minha opinião, eu teria aconselhado alguma coisa mais simples, um ser humano menos complicado, sem tanta arrogância e cupidez”.
Enfim...o mundo é o que é. Não somos culpados pelo que é ou pelo que tem sido, mas teremos responsabilidade pelo que vier a ser.
Revelação Quero fazer uma revelação estarrecedora: a Vida se alimenta da Morte. A Natureza é impiedosa, cruel, amoral - ela nos dá o mau exemplo. Nela, o gordo come o magro, o forte engole o fraco. Para que estejamos vivos, temos que matar, seja um suave pé de alface ou uma porca de 300 quilos: esta é a nossa natureza animal, que transportamos para as relações humanas.
O ser humano ainda não se humanizou e vive pendurado pelo rabo, saltando de galho em galho; ainda não se rege pela Moral. Vivemos épocas neandertalianas e, só porque aprendemos a dar nó em gravata, pensamos que já somos Homo Sapiens e, pior - que pretensão! - Sapiens Sapiens! Temos que ver de frente a verdade: somos bichos! - ponham isto na cabeça! O homem é o lobo do homem - dizia o poeta. Eu acrescento, prosaico: o homem come...e é comestível!
Invenção Nesse mundo de rancor e ódio, trancos e barrancos, a Bondade é uma invenção humana - não nasce espontânea como flor silvestre. Tem que ser ensinada e aprendida...mas o ser humano é mau professor e pior aluno. Esta é a nossa vasta, imensa tarefa: temos que nos afastar da nossa natureza selvagem e criar uma cultura em que a bondade seja possível e a solidariedade gozosa. Esta é uma tarefa cultural! A Cultura, porém, não se limita às obras expostas em museus ou aos espetáculos com entrada paga: cultura é o como fazer, para quê e para quem. Temos que assumir a nossa condição humana, criadora. Não somos castores que constroem diques geneticamente programados, sem saber o que fazem, ou pássaros que fabricam sempre o mesmo ninho, cantando a mesma canção, sem escolher a partitura. Não somos uirapurus, que congelam a floresta com a beleza do seu canto, quando abrem o bico. Somos capazes de cantar e construir, mas somos mais, muito mais, capazes de inventar canções e arquiteturas! O uirapuru sabe cantar, mas não sabe que está cantando - nós, mesmo cantando desafinados, sabemos desafinar.
Liberdade A Arte faz parte da Cultura, porque a cultura é o ser humano, é o que há de humano no ser: é o que nos distingue de quem é bicho. Para fazer cultura, para inventar, o artista tem que ser livre e fazer o que quiser. Se ele se submete ao mercado, se aceita suas leis e deixa de ser criador, deixa de ser artista. Eu admiro os comerciantes que fazem do seu comércio uma arte, e tenho piedade dos artistas que fazem de sua arte um comércio.
No mundo globalizado, a cultura e a arte, por serem tão poderosas, nos são roubadas e passam a servir ao mesmo propósito do comércio: o lucro. Quando assistimos a um filme de Hollywood, não é apenas o enredo que temos que engolir goela abaixo: são os modelos de brim, os chapéus texanos, o uísque mal-acabado, a música, os Hello, Joe! Go to hell, Jack! São os carros que explodem em modernas pontes de aço, e que são jogados ao mar, sulcado de jet-skis. São as sirenes policiais, as violências, os últimos modelos de metralhadoras que serão usadas pelos nossos traficantes, sempre up-to-date com as inovações bélicas.
Um filme vende mais mercadorias do que os anúncios comerciais explícitos. O mero fato de que a maioria dos filmes de TV a cabo seja falada em inglês já nos faz pensar em inglês, mesmo aqueles que não conhecem o significado das palavras. Não é por outra razão que, nas favelas cariocas, podem-se encontrar pessoas que atendem pelos nomes de Shierley Temple de Oliveira, Clark Gable da Silva, John Wayne dos Santos - graças a Deus, ainda não topamos com nenhum Sylvester Stallone de Deus, Michael Jackson da Encarnação ou Madonna Mia do Encantado.
Crime O fato de assistirmos na telinha a situações assim chamadas cômicas, mesmo que não tenham a menor graça, ou românticas, mesmo sem amor, já nos faz assimilar os sentimentos e os comportamentos dos personagens, mesmo que os saibamos imbecis e insossos. Ficamos sem sal e bobos. Tv tem sido uma forma criminosa de hipnotismo. A globalização do lucro impõe a uniformização dos seres humanos: todos devem ser iguais e consumir igual, vestir igual e comer o mesmo hambúrguer de vaca louca! A globalização impõe normas de comportamento, valores, ideologias e gosto estético.
Quando se diz que os últimos governos brasileiros nunca deram a importância devida à Cultura, eu penso diferente: sempre deram enorme importância à cultura estrangeira e aceitaram passivamente que ela invadisse nossas telas, telinhas e telões. Servilismo infantil, complexo de inferioridade.
Perigo Quando a França exigiu a exceção cultural - isto é, exigiu que o cinema e outras artes ficassem de fora da liberdade de invasão de uma potência por outra, num grande acordo comercial - não era o valor intrínseco das suas obras de arte que estava protegendo: pensava no perigo que a arte norte-americana traria no seu bojo, a propaganda do seu país e seus costumes, e também o vestuário, a indústria automobilística, os eletrodomésticos etc. As telas de cinema são vitrines de Mercadorias e de Moral - as mercadorias se vendem e a Moral se impõe.
É importante para os globalizantes destruir as culturas nacionais, locais, onde pretendem impor o seu comércio; é importante dizimá-las, pois a cultura é identidade, e os globalizantes precisam destruir identidades para melhor venderem seus produtos.
Quando ouvimos música brasileira, bossa nova ou tradicional, chorinho ou samba de carnaval, vemos a nossa cara, mesmo se feia; vendo um filme, mesmo da Atlântida, dizemos: “Somos nós!” - mesmo com pena. Hoje, é proibido ver-nos em nossa arte. Temos que ouvir rock e heavy metal, ver Godzillas e Homens Aranha! A globalização impõe a todos a mesma língua, na qual devemos dizer: yes, sir, why not?
Paradoxo Este é o curioso paradoxo da globalização: para globalizar é necessário abolir o diálogo, isolar o indivíduo - não para que fortaleça sua individualidade, mas para que desapareçam suas diferenças, que lhes dão unicidade. Instala-se o indivíduo diante da TV - TV como símbolo de intransitividade, não como eletrodoméstico - para que, dele, anestesiado, extraia-se a sua individualidade.
Seqüestra-se a individualidade do indivíduo, transformado em coisa. Isola-se o indivíduo para que perca sua individualidade, ao perder o diálogo, ao perder suas alteridades. Indivíduo sem identidade, sem nome: apenas um número! Elimina-se a descontinuidade entre um indivíduo e outro: o monólogo da globalização promove a clonagem do ser humano! Em arte, elimina-se o artista - aquele que cria o novo - e entra em cena o técnico artesão - aquele que reproduz, ad infinitum, o mesmo modelo.
A globalização é a morte do artista!
Impossibilidade Hoje, é quase impossível ser artista e permanecer no mercado cultural - poucos conseguem. Se quisermos, com nossa arte, ajudar a mudar o mundo - nosso país, nosso estado, nossa rua! - é imperativo trabalhar onde a arte não se compra nem se vende, onde a arte se vive. Onde somos todos artistas - lá, onde vive o povo: nas ruas, favelas, nos acampamentos do MST, nos sindicatos, igrejas. Lá estão aqueles que necessitam de sua própria identidade para se libertarem da opressão, mesmo quando dominados pelas idéias dominantes, mesmo quando alienados: devemos ter esperanças, mas não ilusões.
Existem hoje duas ideologias fundamentais neste mundo terminal: uma que diz que a Humanidade é uma só, que somos irmãos, e o Estado deve oferecer oportunidades iguais a todos, sem levar em conta o berço, a conta bancária e o cheque especial. A outra humanidade pode ser explicada por uma fábula antiga, a Jangada da Medusa.
Náufragos Ela nos conta a história de náufragos à deriva: sem comida, decidiram trucidar e comer os moribundos. Primeiro, os aleijados; logo depois, criancinhas indefesas, mais tarde...Queriam se salvar e foram-se comendo uns aos outros até que, na jangada, sobrou um único sobrevivente.
Morto de fome, o único náufrago pôs-se a comer a si mesmo, começando pelas partes mais dispensáveis do seu corpo: os dedos e o braço esquerdos, e também a perna do mesmo lado. Foi comendo o seu corpo e acabou por comer os intestinos, já que não tinha encontrado nada de mais nutritivo, nem na cabeça nem no coração: órgãos inúteis! A última coisa que o náufrago comeu foi a própria língua e a boca! Depois não comeu mais nada...cuspiu um dente!
Canibal As classes ricas, no Brasil, ainda estão comendo apenas crianças de rua, trabalhadores sem-terra, negros e desempregados. Mas virá o dia em que se comerá a si mesma! Essa ideologia canibal também se chama Modernidade. Canibalismo é moderno! Dizem que esquerda e direita já não existem, são coisas da Revolução Francesa. Não falarei de esquerda e de direita, palavras fora de moda. Falo de Humanismo e Canibalismo - basta de hipocrisias!
Neste confronto, Humanismo versus Canibalismo - Tiradentes versus Joaquim Silvério - no Brasil ainda estão vencendo os canibais! No mundo que se pretende robotizar, a obra de arte perde sua razão de ser e dá lugar ao produto único. O Mercado opera em nós a Prótese do Desejo, extirpa nosso desejo e nos implanta o desejo do Mercado. Para que se compre e venda mais, tenho que cantar com a garganta do cantor de sucesso; bailar com as pernas de outro bailarino, não com as que tenho; ver o mundo com olhos alheios, não com os meus. Chorar a lágrima que não é minha, sorrir o sorriso que esculpiram no meu rosto, como pedra.
Apelo Eu peço: cantemos com a nossa voz, mesmo rouca; bailemos com o nosso corpo, mesmo trôpego; digamos a nossa palavra, mesmo insegura. Essa deve ser a arte dos Humanistas, daqueles que negam a robotização, afirmam as diferenças e, delas, a unidade: somos homens e mulheres, temos a pele negra e a pele branca, são nossos olhos azuis e castanhos, e a nossa esperança é verde! Somos diferentes: pelas culturas em que crescemos, países em que vivemos; somos iguais pela determinação em sermos nós mesmos, em nos recusarmos a ser extensões do Mercado-Rei, macacos de auditório!
A globalização deseja o monólogo: para combatê-la, o diálogo é necessário, nos sindicatos e nas igrejas, nas escolas e nos partidos, nas ciências e nas artes, na solidão do divã do psicanalista e nas reuniões do teatro na praça.
Privilégio O teatro é um meio privilegiado para descobrirmos quem somos, ao criarmos imagens do nosso desejo: somos o nosso desejo, ou nada somos. Por que o teatro? Porque existem artes, como a música, que organizam o som e o silêncio, no tempo; como a pintura, que organiza a forma e cor, no espaço; e existem artes como o teatro, que organizam ações humanas no espaço e no tempo. Ao organizarem ações humanas, o teatro mostra onde se esteve, onde se está e para onde se vai: quem somos, o que sentimos e desejamos. Por isso, devemos fazer teatro, todos nós: para saber quem somos e descobrir quem podemos vir a ser.
No Teatro do Oprimido, aquele que entra em cena para contar um episódio de sua vida é, ao mesmo tempo, o narrado e o narrador - pode, por isso, imaginar-se no futuro. Entra em cena para fazer teatro, porque teatro não se faz sozinho, e para que possamos todos dizer eu, antes de nos juntarmos numa palavra mais bela: nós!
Espelho “O teatro é um espelho onde podemos ver nossos vícios, nossas virtudes” - disse Shakespeare. Pode-se também transformar em espelho mágico, como no Teatro do Oprimido, espelho que podemos invadir se não gostarmos da imagem que nos mostra e, ao penetrá-lo, ensaiar modificações desta imagem, fazê-la mais ao nosso gosto. Neste espelho, vemos o presente, mas podemos inventar o futuro dos nossos sonhos: o ato de transformar é transformador - ao mudar nossa imagem, estaremos mudando a nós mesmos, para mudarmos, depois, o mundo.
Teatro é arte e sempre foi arma. Hoje, mais do que nunca, lutando pela nossa sobrevivência cultural, o teatro é arte que revela nossa identidade e arma que a preserva. Para resistir, não basta dizer não: desejar é preciso! É preciso sonhar. Não o sonho colorido da televisão que substitui a dura realidade em preto e branco, mas o sonho que prepara uma nova realidade. Uma nova realidade em que se busque unificar a Humanidade, mas não uniformizar os seres humanos.
Hoje, o teatro é uma arte marcial!
Fonte: Blog de Lionel Ficher.
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